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Peguei Nós Somos a Cidade para ler sabendo apenas duas coisas: que era da NK Jemisin, que considero uma das autoras de ficção especulativa mais talentosas dessa geração e que era sobre cidades. Mais especificamente, sobre pessoas que são cidades. Isso foi o suficiente para aguçar a minha curiosidade. Porém, quando comecei a ler, vi que a premissa é muito melhor do que eu imaginava: E se existissem pessoas que personificam cidades para ajudá-las a nascer? E se toda vez que uma cidade nasce, houvesse uma força contrária, um Inimigo, tentando impedi-la? E é em cima dessas duas bases que ela trabalha, construindo uma obra esquisita, inteligente e labiríntica, que é um retrato dos nossos tempos, para o bem ou para o mal.
Ela pega o horror lovecraftiano e transforma em algo completamente dela, uma apropriação deliciosa quando você sabe o contexto (e ela não deixa você esquecer o contexto e o racista de merda que o Lovecraft foi). Eu adoro um livro que chamo de "livro louco" e esse está 100% nessa categoria: você é jogado na história da mesma forma que os personagens, sem saber muita coisa do que está acontecendo, apenas que existe algo muito esquisito acontecendo. Ela não para para te explicar, assim como os personagens não tem ninguém explicando para eles o que está acontecendo - é um quebra cabeça, um caleidoscópio de informações, que você vai unindo até entender o que está acontecendo (e ainda assim! ainda assim!).
Eu acho que essa sensação de estar perdido é uma das coisas mais divertidas do livro, esse processo de ir compreendendo aos poucos, junto com os personagens, o que está acontecendo no livro, por isso estou evitando fazer análises mais complexas. Mas eu posso dizer que a a Jemisin escolhe e revela as personificações das cidades magistralmente, construindo reflexos muito interessantes dos locais, com seus defeitos e suas qualidades, suas forças e suas fraquezas. São os habitantes que fazem uma cidade ser o que ela é - mas se você deixar, as corporações, a mania de sanitização e de uniformização do capitalismo acabam matando-a. É sobre isso que é a história, no final. Sobre como o capitalismo com sua obsessão por progresso e desenvolvimento, com todos os privilégios que concede aos seus escolhidos, acaba por matar a essência de quem nós somos.
Porque todos nós somos a cidade.

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Em “Nós somos a cidade”, N.K. Jemisin nos apresenta um mundo em que as cidades nascem e morrem (literalmente). Mas, não se trata de apenas “um mundo” e, sim, um multiverso, ou seja, existem diversos mundos que coexistem - ou não. Cada cidade, geralmente, é uma pessoa, em si própria, mas também é um veículo para todas as pessoas, edifícios, pontos de referência e cultura da cidade. No entanto, após um antigo mal reaparecer mais forte e de forma inesperada, o processo de nascimento da cidade de Nova Iorque não se dá como o esperado. Assim, os cinco distritos de NI mais um precisam se unir e, junto ao avatar primário - aquele que representa toda a Nova Iorque - derrotar o inimigo de uma vez por todas.

A escrita da N. K. Jemisin, mais uma vez, não decepcionou. Com direito a gírias e palavrões, Jemisin vai amarrando o leitor e o fazendo querer saber tudo sobre aquele novo (multi)universo. Ao jogar o leitor já dentro do olho do furacão (quase que no sentido literal), torna-se difícil parar de ler antes de conseguir compreender, ou pelo menos começar a entender, tudo que de início é apresentado. Embora no começo eu tenha ficado confusa, também fiquei intrigada.

As críticas da autora à H. P. Lovecraft são precisas. Segundo Jemisin para o The New Yorker, “é impossível separar a ideologia de Lovecraft de sua grandeza como escritor de fantasia: sua visão pessoal dos povos não-brancos como monstros formou a maneira como ele escreveu sobre monstros.”. Não irei adentrar muito à fundo na questão para evitar spoilers, mas saiba que, em “Nós somos a cidade”, o inimigo pode aparecer, às vezes, como um monstro enorme com tentáculos, mas, na maioria das vezes, ele se apresenta como um humano branco, racista e parte da Alt-Right - fração da extrema direita dos Estados Unidos e de alguns países europeus.

Em entrevista para a EW, Jemisin contou que quis sair do tolkienismo e escrever algo mais próximo à Ursula K. Le Guin. Em “Nós somos a cidade”, assim como em “A Wizard of Earthsea” de Le Guin, a autora se aprofundou na fantasia como uma auto análise psicológica. É simplesmente incrível.

A escolha dos avatares de NI serem, em sua maioria, não-brancos e alguns avatares LGBTQIA+, foi um grande acerto. N. K. abordou diferentes questões que atravessam esses grupos, principalmente em NI, e, como dito em seus agradecimentos, estudou muito para isso.

Com personagens com vivências muito diferentes entre si e nem sempre legais, Jemisin nos apresenta a um grupo de pessoas (e distritos) que, embora tenham inúmeras diferenças, se unem e desenvolvem um laço especial em prol de salvar milhares de vidas.

“Nós somos a cidade” fala sobre o planejamento urbano e pessoas não-brancas, capitalismo, racismo, homofobia, xenofobia, extrema direita, pertencimento e cultura. Além disso, fala sobre amor, respeito, unidade e formação de laços para além do fator sanguíneo.

Vencedor de dois Audie Award e indicado ao Nebula Awards, “Nós somos a cidade” é o livro perfeito para você que gosta de uma fantasia esquisita - no melhor sentido da palavra - e que faz total com o que estamos vivendo. Confesso que olhar para os atuais governantes sem os enxergar com tentáculos está sendo impossível após a leitura!

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O corpo estranho
Quando eu era moleque e brincava no quintal da casa dos meus avós, vira e mexe acabava com uma farpa no dedo ou espinho na sola do pé. Nessas ocasiões, lembro de ouvir os adultos dizerem: “vai inflamar e o próprio corpo expulsa”. Mais tarde, ao cursar a faculdade de farmácia, esbarrei na definição mais técnica desses espinhos físicos e metafóricos que nos invadem ao longo da vida: corpo estranho. Corpo estranho, nada mais é do que qualquer objeto ou substância que entre inadvertidamente no corpo ou em suas cavidades. Invasor identificado, o corpo humano passa a direcionar seus esforços para expulsá-lo de onde não deveria estar. Um sistema de defesa aprimorado por séculos de evolução.

Assim como o corpo humano, cidades são sistemas complexos e plurais. Grandes metrópoles possuem centenas de humanos-células em relações simbióticas, parasitárias e inquilinistas. Juntos somos um imenso corpo formado por vigas, religião e fumaça; concreto, repulsa e afeto; música, arte e respeito.

Corta para “Nós somos a cidade”, de N.K. Jemisin. Um mundo onde cidades que atingem certo grau de maturidade “nascem” na forma de um avatar humano, um avatar que personifique todas as facetas do seu organismo complexo. Na trama de Jemisin, Nova York está prestes a nascer. A pessoa escolhida pela cidade para ser seu avatar – um garoto morador de rua – sabe de forma instintiva, mas não de maneira lógica, o que está acontecendo com ele. Para orientá-lo nessa transição, Nova York recebe a visita de São Paulo, a cidade-avatar mais nova do panteão.

Além de ajudar Nova York a entender sua nova condição, São Paulo está lá para ajudar a protegê-la de um inimigo ancestral das cidades-avatares, uma criatura parasítica interdimensional inspirada no horror cósmico de Lovecraft. São Paulo suspeita que o inimigo anda mais saidinho do que de costume nos seus ataques e pode se aproveitar da desorientação de Nova York para tentar destruí-la. O que, você deve imaginar, é exatamente o que o inimigo tentará fazer.

Para complicar um pouco mais (só um pouquinho) a situação, Nova York tem um parto complicado e seu avatar entra em coma, o que leva a cidade a se fragmentar em cinco avatares-distritos - Manhattan, Brooklyn, Bronx, Queen e Staten Island – para sobreviver. Cinco pessoas que simbolizam o pensamento político e cultural de cada uma das regiões de Nova York. Tanto seu lado progressista quanto seu lado violento e conservador.

Quando soube que N.K. Jemisin estava escrevendo uma fantasia urbana, admito, não imaginei uma brisa tão louca, de concepções extremamente claras, mas de materializações quase abstratas. Comecei o livro esperando alguma convenção do gênero, qualquer uma, algo mais palpável no qual pudesse me agarrar, o que não aconteceu. Pensando por esse lado, o new weird de autores como China Miéville e Jeff Vandermeer me soa um parente mais próximo de “Nós somos a cidade” do que a produção recente de fantasia urbana anglófona.

Se isso é bom? Vai depender do que cada leitor espera. Para mim, se sentir perdido faz parte da experiência. É preciso se jogar na loucura e abraçar a proposta. Jemisin coloca o leitor na mesma desorientação dos personagens-distrito – que não fazem ideia do que está acontecendo – para nos ajudar a entendê-los. Usando um artifício literário, explora a sensação de alguém que acaba de chegar a uma cidade nova e vê todo um mundo desconhecido pela frente.

Assim como os avatares, precisamos entender quais são nossos poderes, nossos pontos fortes e fracos, quem faz parte da nossa rede de afetos e quem são os aproveitadores que devemos evitar. Poderes, aliás, são uma parte importante da construção desse universo. São Paulo, tsc tsc, se defende soprando fumaça. Manhattan parece tirar sua força do dinheiro, ter um instinto de guarda-costas hollywoodiano. Brooklyn, MC e mulher negra, ganha força com sua música, enquanto Bronca, tem como arma seu conhecimento de artes plásticas e sua origem lenape. E por aí vai.

Da parte do inimigo, os poderes também são inspirados em situações cotidianas. No caso, em violências das mais diversas. Embora possa aparecer como uma criatura gigante de tentáculos, espalhar gavinhas que despertam o pior das pessoas, conjurar aranhas bidimensionais capazes de se esgueirar por frestas, seus ataques também são desferidos através de especulação imobiliária, gentrificação, racismo, transfobia, assédio sexual, xenofobia, discurso de ódio, intimidação nas redes sociais. Situações que minorias políticas da vida real e do núcleo de protagonistas do livro reconhecem de longe, infelizmente.

Não por acaso a autora escolheu usar uma criatura inspirada na obra de Lovecraft, autor notoriamente racista, como vilão maior do livro. Eu já comentei que o detestável e arrogante avatar humano desse monstro é uma pessoa muito muito branca? Pois então.

Pare não me estender demais, vamos a alguns aspectos mais técnicos. “Nós somos a cidade” é um livro estruturado principalmente em cima de diálogos. O artifício o torna uma leitura ligeira e permite o debate sociopolítico que é o foco da autora, mas às vezes me pareceu demais. Em certas partes eu só queria ver umas lutas cafonas e despretensiosas entre pessoas de tinta e tentáculos brancos gigantes sem as explicações em tempo real dessas metáforas. Outro ponto importante é que “Nós somos a cidade” é um livro de personagens, e N.K. Jemisin os apresenta sem pressa nenhuma. Alguns se aproximam mais rápido uns dos outros, enquanto alguns seguem isolados até o final. De certo modo, foi como ver vários filmes individuais da Marvel num único livro e ficar torcendo para que eles formassem logo os Vingadores e saíssem para socar uns alienígenas nessa carta de amor da Jemisin para Nova York. Isso significa um livro parado? De jeito nenhum. Você piscou e tá lá o vilão tentando ferrar com alguém.

No fim das contas, “Nós somos a cidade” consegue ser um livro bizarramente estranho e ao mesmo tempo familiar. Se existe algo para se levar ao terminar a última página é o lembrete de que o “sistema imunológico” das cidades está mais para “sistema ideológico” e, tanto aqui quanto nos Estados Unidos, esse sistema evoluiu em cima de séculos de racismo estrutural, pensamentos eugenistas, misoginia cristã e discursos lgbtfóbicos. Agora, cabe a nós, pessoas-avatares, determinar os territórios em disputa e mostrar que o corpo estranho dessa história não somos nós.

E não há parasita arrogante que vá nos expulsar daqui.

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