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Pensando nas relações existentes entre o que se consome e o impacto na vida cotidiana o livro consegue mostrar tudo o que está envolvido na escolha do vestuário, sem juízo de valor, mas sem deixar de apontar o quanto as mulheres são controladas por meio de suas roupas.
Alem das questões sobre as roupas em si, as autoras também fornecem contextualização histórica, social e cultural que auxiliam no entendimento das alterações que acontecem no vestuario, bem como nos recortes de classe e raça que alteram os significados de certos vestuários.
[...] É importante ressaltar que meu interesse por moda é superficial. Não acompanho tendências, alta costura, a história por trás desse mundo todo. Além disso, aproveito para sinalizar que o livro traz “roupa” no nome porque, muito mais do que moda, é nisso que ele foca: a forma como as roupas fazem parte da história da humanidade e como elas servem a papéis sociais e de poder ao longo desse tempo. Se você se identificou com a minha forma de pensar sobre moda e sobre essa temática que citei, é muito provável que você curta a leitura também. ;)
Mayra Cotta e Thais Farage fazem um trabalho primoroso em questionar e também elucidar as muitas formas pelas quais as mulheres tiveram seu papel no mercado de trabalho definido. Uma pergunta feita na obra é um ótimo exemplo disso: se você é mulher, é bem provável que já tenha se perguntado em algum momento se “tal roupa” é adequada para determinada situação, se alguma peça pode causar um efeito indesejado em alguma reunião ou se o tamanho e a modelagem da sua saia podem interferir na sua credibilidade no ambiente de trabalho, por exemplo. E a verdade é que, segundo a linha de raciocínio das autoras, o mercado de trabalho foi construído ao longo dos séculos para que nós, mulheres, nunca estejamos adequadas: ou seremos velhas demais, ou jovens demais, ou mostraremos pele demais, ou seremos “sisudas ou senhorinhas” demais na forma de nos vestirmos. Se usarmos maquiagem, pareceremos fúteis; se não usarmos, pareceremos desleixadas. É um jogo impossível de vencer. E o livro infelizmente não traz uma solução, porque não existe uma única resposta simples que seja capaz de reverter essa dinâmica: como Moda, Roupa e Trabalho habilmente demonstra, isso é uma herança antiga e propositalmente orquestrada.
Compreender o fato de que, desde o Renascimento, as mulheres têm sido colocadas na esfera privada da sociedade (o lar, a família, os filhos) enquanto homens são destinados à esfera pública (o trabalho) é a primeira coisa a ser feita para que possamos encarar os desdobramentos disso, que são sentidos ainda no presente. As autoras usam diversos exemplos pra conectar esse abismo na dinâmica de poder, e é claro que as vestimentas são os mais marcantes. As roupas desconfortáveis das mulheres entre o século XVII e XVIII (não me recordo com clareza agora, me perdoem) ilustram bem essa situação: espartilhos, anáguas e armações de ferro para sustentação dos tecidos são alguns dos itens que transformavam a mulher em um adorno, pois aquele era o papel a ela destinado. E ainda hoje temos a nossa aparência como balizadora da nossa capacidade como profissionais, que está sempre sendo questionada e até mesmo ameaçada.
A obra é dividida nos seguintes temas: uma introdução, “Rumo à construção o nosso próprio poder”, seguida dos capítulos “Mulheres e mundo do trabalho: como chegamos até aqui”, “A moda e os códigos”, “As roupas e o assédio sexual no trabalho”, “Mãe com estilo e estilo de mãe”, “A busca eterna pelo look ideal” e a conclusão: “Como fazer a roupa trabalhar para nós?”. Com esses títulos, acredito que seja possível que vocês captem a essência dos assuntos trabalhados ao longo das páginas, mas é importante deixar claro que as autoras se preocupam em costurar todos esses assuntos, conectando um capítulo aos conceitos vistos no anterior. Por mais que sejam muitos aspectos históricos e sociais a serem debatidos, Mayra Cotta e Thais Farage conseguiram tornar o livro muito fluido, interessante, dinâmico e nada cansativo. Cada problematização feita me deixou imersa e me colocou para refletir, provavelmente sendo esse o motivo pelo qual demorei a sentar e escrever uma resenha.
Mulher, Roupa, Trabalho é uma leitura imperdível pra quem se interessa por estudos de gênero e deseja se aprofundar em um dos muitos aspectos que giram em torno das dinâmicas de poder desiguais entre homens e mulheres. As autoras são didáticas e conseguem aprofundar várias questões – e, onde não conseguem, deixam sugestões de títulos e de bibliografia pra que o leitor possa continuar o estudo por si mesmo. Foi uma leitura que facilmente entrou pras melhores obras lidas recentemente e eu torço pra que você resolva dar uma chance também. Prometo que vale a pena!