Member Reviews
Ler histórias sobre escravidão é tão triste, por saber que tamanha crueldade acontecia (e ainda acontece nos dias atuais).
É uma leitura necessária, que deveria ser obrigatória nas escolas.
Não deixem de ler!
Amada: o gótico moderno e histórias reais de terror
Amada é um romance ambientado em 1873, em Cincinnati no estado de Ohio, uma década após a abolição da escravatura nos Estados Unidos. A historia dividida em três partes segue uma estrutura não linear, complexa e de dificil leitura, não apenas pela escrita incomum, mas pela história brutal e real que contém em suas páginas.
"Vai doer agora", disse Amy. "Tudo que está morto dói para viver de novo."
Toni Morrison ganhou um Pulitzer em 1988 pelo romance Amada, que foi lançado em 1987, e no ano de 1993, Morrison recebeu o prêmio Nobel de Literatura. Alguns anos depois, em 2006, o romance supracitado recebeu o título de obra de ficção mais importante dos últimos 25 anos nos Estados Unidos. A trama, inspirada na história real do caso Margaret Garner, segue a ex-escrava Sethe e sua filha Denver. Ambas vivem em uma casa de número 124, que parece ser mais que apenas uma casa, mas sim um organismo vivo, habitado pelo fantasma da filha mais velha de Sethe, assassinada aos dois anos de idade pela própria mãe, que temia perder seus filhos para a escravidão.
A decisão de Sethe de cometer um infanticídio ocorreu após ela imaginar que seus filhos poderiam passar pelas mesmas situações que ela passou, e tomada pelo desespero, pôs um fim na vida de sua filha e tentou matar seus outros filhos homens, Howard e Buglar, que assim que tiveram idade saíram do 124 e nunca mais voltaram. Após a morte de sua sogra, Baby Suggs, e sem saber o que aconteceu com seu marido, Halle, Sethe vive com a única filha que lhe sobrou, a solitária e sonhadora Denver, em uma casa assombrada isolada dos vizinhos, que se recusam a se aproximar do local.
Tudo muda quando Paul D., amigo de Sethe e também ex-escravo da mesma fazenda na qual ela era mantida, chega ao 124, revivendo traumas de um passado não tão distante e trazendo de volta memórias e feridas da escravidão. Não demora para que o fantasma da filha de Sethe também volte ao 124, mas dessa vez personificada como uma jovem moça, da mesma idade que teria se não tivesse morrido. Amada, que não é apenas faminta de amor, mas também de vingança.
"Todo mundo sabia como ela se chamava, mas ninguém sabia seu nome. Desmemoriada e inexplicada, ela não pode se perder porque ninguém está procurando por ela, e, mesmo que estivessem, como poderiam chamá-la se não sabem seu nome?"
A história de Margaret Garner
Margaret Garner, conhecida como "Peggy", fugiu grávida aos 22 anos, com seus quatro filhos, seu marido e seus sogros da fazenda onde era escravizada. Antes da fuga, Peggy trabalhava como escrava doméstica e ama de leite da esposa do seu dono, Archibald K. Gaines. Historiadores especulam que muitos eram os abusos que Peggy sofria por parte de Gaines, e que pelo menos dois de seus quatro filhos foram frutos de estupros.
Peggy nunca conheceu outra vida, durante toda sua existência, a violência fez parte de sua rotina diária, fosse ela física ou psicológica. Após fugir com sua família, ela procurava uma vida diferente para os filhos, e quando foram encontrados pelos agentes federais, Peggy, tomada pelo desespero, decidiu cortar a garganta de sua filha de dois anos, pois preferia vê-la morta a deixá-la voltar para a escravidão. Não conseguiu fazer o mesmo com seus outros filhos, e após ser capturada nunca mais feriu nenhum deles. O julgamento de Garner durou semanas, e a ideia de seu advogado de defesa era que ela fosse acusada de assassinato, para desafiar a lei do Escravo Fugitivo e abrir precedente de direitos civis; em vez disso, Garner foi indiciada por danos materiais:
"O desfecho do julgamento em si eu conhecia: na verdade, julgou-se que a mãe escravizada não tinha nenhuma responsabilidade legal pela morte da filha (caso considerada responsável, ela teria sido condenada à morte), já que o juiz da Corte Federal Distrital interveio para decidir que a Lei do Escravo Foragido devia ter precedência. Margaret Garner era portanto, pela lei, um bem, assim como seus filhos, que de modo algum lhe pertenciam, pois eram mercadorias que podiam ser vendidas, e de fato o eram com regularidade. Ou seja, Garner acabou sendo considerada não um ser humano com responsabilidades humanas, como a maternidade, mas um animal a ser vendido como se fosse gado. Fosse como fosse, ela estava condenada: à morte precoce como assassina, ou à morte lenta como escravizada brutalizada."
(Toni Morrison, 2017)
Após o julgamento, Margaret Garner foi enviada com seus filhos e seu marido para a Louisiana e vendidos para o irmão de seu antigo senhor de escravos. Peggy passou os últimos anos de sua vida ainda escravizada, e morreu em 1858 de febre tifóide. A história real de Margaret serviu de inspiração para Toni Morrison escrever seu romance publicado em 1987, mas como foi dito pela própria autora, o ponto central de Amada é a criança assassinada. Ao utilizar elementos do terror, Morrison contou a história silenciada de uma inocente, que sofreu tanto quanto qualquer um, e aos poucos se tornou um espírito amargo e com fome de viver:
"É claro que modifiquei nomes, criei personagens, eliminei personagens e encolhi outros [...] Dei-lhe uma filha sobrevivente, cujo parto foi auxiliado por uma moça branca, ela própria escravizada foragida, cuja empatia tinha por base o gênero, não a raça. Imaginei Sethe, nome com o qual batizei a mãe, fugindo sozinha. Inseri uma filha morta capaz de falar e pensar, cujo impacto — e cujo aparecimento e desaparecimento — poderia funcionar como o dano gótico da escravidão."
(Toni Morrison, 2017)
O gótico segundo Toni Morrison
Os elementos de terror estão presentes em toda a trama do livro de Morrison, não apenas no fantasma de Amada, mas também na casa amaldiçoada e na construção gradual do medo na história. Antes da aparição do fantasma de carne e osso, a casa de número 124 já era um personagem atuante e de grande importância. Assim como acontece em diversas histórias de fantasmas, a casa de Sethe parece viva, não apenas pela presença sobrenatural da filha de Sethe, mas também por outros fantasmas, fosse a falecida sogra de Sethe, a amada por todos Baby Suggs, como também outros, que podem ter morrido ali ou não, mas que tinham uma história. E essas histórias de dor, pesar, tristeza e culpa pareciam ser absorvidos pela casa de número 124, como foi dedicado pela própria Toni Morrison aos"‘sessenta milhões e mais".
"O 124 era rancoroso. Cheio de um veneno de bebê. Durante anos cada um lidou com o rancor de seu próprio jeito, mas em 1873 Sethe e sua filha Denver foram suas únicas vítimas.”
Como uma versão moderna de castelos mal-assombrados, Amada faz alusão à literatura gótica e tem como personagem central o espírito de um bebê assassinado, rançoso, melancólico, raivoso, carente e traumatizado, que movia os móveis, machucava animais e mantinha longe toda e qualquer pessoa que não fosse Sethe e Denver, sugando a vitalidade de ambas e impossibilitando um futuro, pois a casa e o bebê as mantinha prisioneiras do passado. Isso até Paul D aparecer, um homem gentil, mesmo com um passado tão sofrido quanto o de Sethe e com sentimentos verdadeiros pela mesma, trazendo para ela a possibilidade de uma nova vida.
"Sethe, se eu ficar aqui com você, com Denver, você pode ir para onde quiser. Pular, se você quiser, porque eu pego você menina. Eu te pego antes de você cair. [...] Quando cheguei aqui e sentei lá fora na varanda, esperando você, bom, eu sabia que não era para um lugar que eu estava indo; era pra você. A gente pode fazer uma vida, menina. Uma vida."
A chegada de Paul é vista com desconfiança por Denver, que temia que a única vida que conheceu com a mãe e o espírito da irmã — sua única amiga e companheira — fosse modificada por um agente de fora, um intruso, alguém que não era seu pai, mas que era o amigo mais antigo de sua mãe e que logo se tornou mais que um amigo.
"Está com visita?", ele sussurrou, franzindo a testa.
"De vez em quando", disse Sethe.
"Meu Deus." Ele recuou da porta de volta à varanda. "Que mal é esse que tem aí dentro?"
"Não é mal, é só tristeza. Venha. Entre de uma vez." [...] Sethe deu de ombros. "É só uma bebê."
"Minha irmã", disse Denver. " Ela morreu nesta casa."
Paul D foi o único em dezoito anos capaz de expulsar momentaneamente o espirito do bebê da casa ao se recusar a se amedrontar e gritar "Deixe este lugar em paz!". Após isso, toda a vida de Denver mudou, sua mãe parecia contente novamente e ela havia perdido sua única companhia. Porém aos poucos, até mesmo ela parecia ter aceitado a ideia de recomeçar. Foi quando uma jovem mulher apareceu na casa 124, trazendo à tona histórias e lembranças que Sethe e Paul lutaram para deixar para trás, e fazendo com que Denver se sentisse mais solitária e deslocada como jamais esteve.
"Contando com a quietude de sua própria alma, ela esquecera a outra: a alma de sua filha bebê. Quem haveria de dizer que um velho bebezinho pudesse abrigar tanta raiva?"
Sangue e leite
O amor que Sethe sentia pelos filhos era "grosso demais". Eles eram a coisa mais importante de sua vida e ela faria literalmente qualquer coisa por eles, o que era perigoso. Perigoso pois a maternidade para uma escrava nunca podia ser vivida em sua plenitude, e tanto a mãe quanto os filhos eram meras propriedades que poderiam ser vendidas, arrancadas ou mortas em um piscar de olhos. Como foi apontado em um trecho do livro:
"Arriscado, pensou Paul D, muito arriscado. Para uma mulher que era escrava, amar alguma coisa tanto assim era perigoso, principalmente se era a própria filha que ela resolveu amar."
Seu leite podia ser roubado, pois também não era seu e muito menos da criança que foi gerada por ela, e sim das crianças brancas filhas de seus donos. Por isso o episódio no qual seu leite foi roubado transtornou tanto Sethe e demonstra como a dor de não poder preservar algo que seu próprio corpo produziu para alimentar seu filho foi um grande combustível para ela tomar a decisão fatídica que ocasionou a morte de sua filha.
"Eu tinha leite", disse ela. "Estava grávida da Denver, mas tinha leite da minha filhinha. Não tinha parado de amamentar ainda quando mandei ela na frente com o Howard e o Buglar."[...] "Todo mundo sentia meu cheiro antes de me ver. E quando me viam, viam as gotas de leite no peito do vestido. Eu não podia fazer nada. Só sabia é que tinha de dar meu leite para a minha filhinha. Ninguém ia amamentar ela como eu."
"Homem não sabe muita coisa", disse Paul D, "mas sabe que um bebe de peito não pode ficar muito tempo longe da mãe."
"Então homem sabe como é mandar embora seu filho quando o peito está cheio."
Após tomar a decisão de fugir com a família para a casa da sogra, que tinha tido sua liberdade comprada pelo filho Halle, Sethe precisou se despedir momentaneamente dos filhos que foram primeiro ao encontro da avó. Ela seguiria mais à frente, grávida de Denver e na companhia do marido, mas um acontecimento modificou os planos, traumatizou ainda mais Sethe e fez com que seu marido desaparecesse.
"Depois que eu deixei vocês, aqueles rapazes entraram lá e tomaram meu leite. Foi pra isso que entraram lá. Me seguraram e me tomaram.[...] Os rapazes descobriram que eu tinha contado deles. O professor fez um deles abrir minhas costas e quando fechou fez uma árvore. Ainda está crescendo aqui."
"Usaram chicote em você?"
"E tomaram meu leite."
"Bateram em você e você estava grávida?"
"E tomaram meu leite!"
A violência sexual e emocional que Sethe sofreu ao ter seu leite roubado parecia doer mais que as marcas que carregou nas costas durante toda a vida. Seu relato chocante se torna ainda mais brutal quando ela descobre, após uma conversa com Paul D, que seu marido assistiu a tudo e, impotente, não pôde fazer nada; logo depois desapareceu sem deixar rastros. A raiva que Sethe sente e o desespero ao pensar que seus filhos, principalmente as filhas, poderiam passar pelo que ela passou a levam a cometer infanticídio - e ela não foi a única. Como foi apontado por Jéssica Amanda de Souza Silva em seu texto "Trauma, memória e identidade em Beloved, de Toni Morrison":
"Sethe, portanto, não fora a única a cometer infanticídio. A prática era comum e as circunstâncias que levavam as escravas a matar a sua prole eram diversas, desde livrar-se dos filhos indesejados, frutos de violadores brancos, à tentativa de proteção dos seus filhos negros, futuros escravos."
No decorrer da trama, conhecemos a história de outras escravas, que forçadas a se deitar com seus donos, estupradas por pais, filhos, agentes da lei e diversos homens brancos com uma infinidade de títulos, não reconheciam as crianças geradas por meios da violência. Sem romantização e mostrando a realidade dura das escravas na época, que não tinham direito de escolha a respeito de seus próprios corpos, mas que podiam fazer algo a respeito dos frutos desse abuso, a autora traça sua narrativa, inclusive da própria mãe de Sethe:
"Ela jogou todos fora, menos você. O da tripulação ela jogou fora na ilha. Os outros de outros brancos, ela também jogou fora. Sem nomes, ela jogou eles. Você ela chamou com o nome do negro. Ele ela abraçou. Os outros ela não abraçou. Nunca."
É importante entender as motivações que levaram Sethe a matar sua filha. Se não for possível perdoar, ao menos tentar entender o contexto e tudo que passou pela cabeça dela quando se viu sem esperança é fundamental. Para Sethe, o roubo de seu leite foi mais violento que os momentos de tortura e a privação que lhe foi imposta de amar seus filhos e ser uma mãe.
"Os bebezinhos brancos mamavam primeiro e eu mamava o que sobrava. Ou nada. Não tinha leite de mãe que fosse para mim. Eu sei o que é ficar sem o leite que é seu; ter de brigar e gritar por ele, e receber tão pouco do que sobra."
Seja pela dor ou pelo amor, pelo sangue ou pelo leite, os traumas da época da escravidão continuavam em Sethe e em tantas outras, assim como em seus descendentes e seus fantasmas. E quando Sethe avista a moça, até então desconhecida, adormecida na porta de sua casa, ela sente uma vontade incontrolável de urinar, como se sua bolsa tivesse sido rompida novamente e, assim, a bebê personificada no corpo de uma bela e misteriosa jovem renasce.
"Uma mulher completamente vestida saiu de dentro da água. [...] Ninguém a viu surgir nem passou acidentalmente por ali. Se vissem, o mais provável seria terem hesitado em se aproximar dela. Não porque estivesse molhada, ou cochilando, ou tivesse o que soava como asma, mas porque em meio a tudo aquilo ela estava sorrindo."
A chegada de Amada trouxe para cada um dos moradores do 124 emoções distintas. Para Sethe, a esperança de recomeço, mas que na verdade se desenvolve para uma relação abusiva e obsessiva. Amada quer amor, mas também quer vingança. Ela quer vida, por isso suga a da mãe. Ela a odeia e ao mesmo tempo a ama tanto que quer se fundir a ela.
"Eu bebi seu sangue
Eu trouxe seu leite
Você esqueceu de sorrir
Eu amei você
Você me machucou
Você voltou pra mim
Você me deixou
Eu esperei você
Você é minha."
Amada
Amada rapidamente reivindica seu lugar na casa, contando histórias que uma desconhecida não conhececeria, fazendo perguntas sobre situações íntimas e provocando em Denver uma possessividade inexplicável, mas que para a garota era evidente. Sua irmã havia retornado e ela não estava mais sozinha, mas Amada tinha outros planos. Amada parecia sentir fome, fome de coisas doces, mas também de atenção, e Sethe não era a única vítima de suas investidas. Era como se ao mesmo tempo que parecesse muito infantil, também fosse muito madura, e seus planos de posse não incluíam mais ninguém além de Sethe. Mesmo apaixonada pela irmã e carente de sua atenção, Denver notou antes da mãe que a garota era perigosa, mas que nada poderia fazer se Amada tomasse o controle da casa, e para isso a jovem precisava antes de tudo se livrar de Paul D.
"Toque em mim. Toque em mim. Lá por dentro e chame o meu nome."
Paul foi o único que tratou a recém-chegada com desconfiança. Algo nela sempre o incomodou, e suas incansáveis perguntas e seus olhares invasivos o faziam acreditar que algo estava errado com aquela moça. Não demorou muito para que as desconfianças de Paul ganhassem fundamento. Amada era gananciosa e queria a atenção de todos, inclusive a de Paul, mesmo que parecesse odiá-lo. Sethe estava cega com a chegada da jovem - mesmo que ainda não tivesse certeza de que Amada era sua filha reencarnada, ela logo desenvolveu um instinto protetor para com a garota. Embora desconfiada de que algo estava errado, Denver se recusou a ficar do lado de Paul, e como foi apontado por ele próprio, ele não sentia que o desejo que Amada emanava era pra ele, mas mesmo assim se sentia incomodado, deslocado, perseguido e atormentado.
"O que? Um homem adulto dominado por uma garota? Mas e se a garota não é uma garota, mas alguma coisa disfarçada? Alguma coisa sórdida que parecia uma garota bonita [...] demônio dos infernos.”
A relação que desenvolve com Amada deixa Paul D esgotado, assustado e culpado. Apenas a simples menção a Amada faz com que ele entre em desespero. Agindo como uma espécie de succubus, Amada parece se alimentar da energia vital de Paul durante a noite, e aos poucos o destrói por dentro e o leva à beira da insanidade. O fato de Amada ser um ser sobrenatural que quer mais do que possui-lo, desejando se livrar dele, leva Paul ao limite e o faz se lembrar de situações do passado que enterrou fundo dentro de si, trazendo à tona uma fragilidade e considerando a violação do homem negro, seus traumas e feridas, que diz respeito não apenas sobre si mesmo, mas a histórias de seus antigos companheiros, como também ao marido de Sethe.
"Você disse que eles roubaram seu leite. Eu nunca soube o que foi que mexeu tanto com ele. Foi isso, eu acho. O que eu sei foi que alguma coisa acabou com ele. Não o ano que passou trabalhando sábado, domingo e hora extra de noite, isso nunca mexeu com ele. Mas seja lá o que for que aconteceu naquele celeiro aquele dia, isso quebrou ele en dois como se fosse uma vareta. [...] Deixe eu te dizer uma coisa. Um homem não é uma droga de um machado. Que corta, racha, bate cada minuto do dia. Tem coisa que pega o sujeito. Coisa que não dá pra cortar fora porque está dentro."
Paul não consegue confessar a Sethe o que aconteceu, e nem compartilhar com ela os momentos de horror que foi obrigado a relembrar. Aos poucos o turbilhão de emoções faz com que ele vá embora da casa, deixando Amada livre para o que realmente deseja: Sethe.
"Sethe foi lambida, provada, comida pelos olhos de Amada. Como um demônio familiar, ela rondava, sem nunca deixar o cômodo onde Sethe estivesse, a menos que isso lhe fosse ordenado ou solicitado.[...] Um toque não mais pesado que de uma pena, mas mesmo assim carregado de desejo. Sethe se mexeu e olhou em torno. Primeiro para a mão nova e macia em seu ombro, depois para seus olhos. O desejo que ali viu era sem fundo. Algum apelo apenas controlado."
Como foi apontado por Morrison em seu livro A origem dos outros: seis ensaios sobre racismo e literatura, a única com direito inquestionável de julgar as ações de Sethe seria a própria criança morta, e é exatamente isso que Amada faz. Ela quer respostas sobre seu passado, quer entender o que levou a mãe a fazer aquilo, mas ao mesmo tempo nada do que Sethe faça parece surtir o efeito que Amada deseja, e ela continua a sugar como um vampiro os carinhos da mãe e todos os seus pedidos de desculpa. Enquanto leva Sethe lentamente à loucura, fazendo-a parecer cada vez mais destruída física e emocionalmente, Amada engorda e se modifica, e os papéis se invertem, fazendo Sethe regredir ao estágio infantil. Nas palavras de Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos:
"No entanto, a 'fantasma gananciosa que precisava de muito amor', como é descrita por Denver, representa mais do que apenas a filha ressuscitada de Sethe. Em meio às suas divagações, ela carrega na memória e encarna a dor e a cólera dos milhões de escravos que fizeram a Passagem do Meio (‘Middle Passage’)."
Deixada mais uma vez de fora, a chegada de Amada, ao contrário do que Denver pensava que aconteceria, isso a isola muito mais e traz à tona sentimentos e medos de uma menina solitária e traumatizada. Ainda que Amada e Denver não tenham vivido a experiência da escravidão, ambas carregam esse peso. Amada por ter conquistado sua liberdade após ser assassinada pela mãe, livre da escravidão mas não da morte. Seu espírito se alimentou por anos da culpa que Sethe carregava e do ódio que o próprio fantasma desenvolveu. Já Denver desenvolveu um grande temor e desconfiança pelo mundo externo, deslocada dentro de si mesma e em sua própria casa. Ela admite em um trecho do livro que ama sua mãe, mas que sente medo dela, que pensa constantemente no pai que nunca conheceu e nos irmãos que a deixaram sozinha com a mãe que a ama, e a quem ela também adora, mas que ao mesmo tempo a apavora.
"Amo minha mãe, mas sei que ela matou sua própria filha e, mesmo tão terna comigo, tenho medo dela por causa disso."
Entretanto mesmo que não seja a personagem de maior enfoque na trama, Denver é a que tem mais desenvolvimento e amadurecimento. É ela que vai à procura de ajuda, não apenas para a mãe, mas para si mesma, faz as pazes com Paul D e finalmente sai da casca. E é graças a ela e a sua coragem que as mulheres da cidade descobrem o que está acontecendo no 124, e em um momento de união, todas se juntam para expurgar o espírito raivoso da criança-demônio.
"Denver pensou entender a ligação entre sua mãe e Amada: Sethe estava tentando compensar o serrote; Amada estava fazendo Sethe pagar por aquilo. Mas era uma coisa que nunca teria fim, e ver sua mãe diminuída a deixava envergonhada e furiosa."
Mesmo inspirado na história real de Margaret Garner, que teve um final brutal e infeliz, Toni Morrison fez questão de dar indícios de um final feliz para sua Sethe e aos demais moradores sobreviventes do 124. O último diálogo entre Paul D e Sethe carrega uma delicadeza sem igual e transmite ao leitor um sentimento de esperança e amparo, além da possibilidade de uma nova vida com paz e amor:
"Ela me abandonou."
"Ah, menina. Não chore."
"Ela era minha melhor coisa."
[...]
"Sethe", diz ele, "Eu e você, nós temos mais passado que qualquer um. Precisamos de algum tipo de amanhã.[...] Você é a melhor coisa que existe, Sethe. Você é."
"Eu? Eu?"
O que mais chama atenção nesse livro é sua escolha narrativa. Este clássico da literatura não realiza concessões. É um livro que, assim como na sua forma física, na sua materialidade, desestrutura o leitor, o faz se locomover de muitos achismos. É de uma subjetividade firme e entrecortada ao mesmo tempo, pela qual o leitor (se) percorre tentando, ele próprio, (des) organizar o sentido daquilo que a autora apresenta. É um romance ousado, difícil, sim, mas sem dúvida uma experiência única.
Terminei essa leitura há poucos dias e ainda estou pensando nessa história...
Aborda muitos temas atuais e a autora consegue, de uma forma bastante sensível, envolver o leitor do início ao fim. É uma leitura intensa, portanto pode haver a necessidade de fazê-la aos poucos.
Assuntos como maternidade, amor e escravidão são conversados entre passado e presente e obviamente fica a mensagem de que nossas escolhas impactam em praticamente tudo na nossa vida.