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Ana Cristina Cesar se tornou um dos principais nomes da Geração Marginal de poetas dos anos 1970. Com versos disruptivos, Ana falava de forma livre acerca de ser uma mulher num mundo em constante transformação, mas ainda muito limitado por repressões sociais e políticas. Sua obra desperta até hoje a curiosidade e o encantamento de leitores que se enxergam em suas palavras, nas brincadeiras com a escrita e na estranheza de ser uma pessoa descobrindo o mundo e a si mesma.
Em Amor mais que maiúsculo, conhecemos os anos de formação de Ana C. através das cartas que ela enviou a seu namorado enquanto morava em Londres, na Inglaterra. Luiz Augusto Ramalho, morando na Alemanha, estava longe dela, mas ambos compartilhavam um vínculo muito forte e trocavam longas cartas, contando da vida e falando, especialmente, dos sentimentos que nutriam um pelo outro.
É interessante como o mundo turbulento e efervescente de 1969 e do início da década de 1970 se desvela a partir das cartas de Ana Cristina Cesar. Enquanto ela fala de seu amor por Luiz Augusto e de como sentia a falta do namorado, comenta casualmente que haveria um show dos Beatles - o famoso Rooftop Concert, a última apresentação pública da banda. E isso é dito com um tom casual, como algo que acontece toda semana - o que nos dá uma visão estranha, porém real, do quanto somos sujeitos históricos. Para Ana, aquilo era bacana, mas nada tão absurdo; para nós, trata-se de um momento fixo na história, algo refletido em luzes douradas, que jamais se repetiria e que deve ser preservado. O mesmo acontece com a estreia do musical Hair, que é mencionada algumas vezes na carta - e Ana reclama do preço do ingresso, que era muito caro. O que hoje nos é icônico, para ela era o dia a dia.
Mas o que realmente dá o tom às cartas é o sentimento de Ana por Luiz. Em todo lugar, a qualquer momento, o nome de Luiz é evocado por Ana como se ele fosse uma sombra etérea, sempre presente, mas nunca tangível.
"Luiz, eu estou ficando louca. Não a loucura passageira dos amantes das grandes cidades, não a loucura inútil dos ouvintes de violinos, não a loucura em prantos dos mais ou menos desesperados. Eu estou ficando louca por não entender a sobrevivência destes corações. Eu estou ficando por não conseguir compreender essa minha vida entorpecida, vida sem a tua (Deus, Deus). Eu estou (o chão treme com os violinos impressionistas) por receber uma carta tua e a tua universal declaração de amor e não entender nada (meus corações galopeando) e não poder chorar (meus corações diminuindo) e não poder dizer eu te amo para ventos e planetas passantes e ter que viver sem o te-amo que eu via nos teus passos. Meu, eu digo, meu. Amor, eu estou dizendo, meu. Não posso reaprender a falar sozinha."
A questão da loucura é citada algumas vezes. Se não se tratasse de um livro de cartas escritas por uma pessoa real, seria possível jurar se estar lendo uma ficção nos tons de A redoma de vidro, de Sylvia Plath, um coming-of-age de uma jovem naquele período da adolescência em que se está caminhando para a idade adulta, num país distante, tendo diversas oportunidades de estudo num dos epicentros culturais do mundo da época, e que a tudo registra em cartas de amor e estranhamento.
"Esquisita essa pré-sensação de estar enlouquecendo."
A solidão também perpassa a escrita de Ana C. Enquanto estuda, passeia, conversa com o pessoal da casa em que vive, escreve cartas de amor, ela reflete a cada frase o quão sozinha está. Mesmo cercada de pessoas, a impressão que temos é a de que ninguém consegue entendê-la. Aquele parece ter sido um período muito emocionalmente solitário para a jovem Ana Cristina.
E nos tempos vagos temos de ficar na biblioteca estudando. Isso é ótimo, estou lendo bastante, especialmente história da Europa. E as minhas colegas são muito compreensivas e me ajudam na hora de mudar de sala e não perguntam nada sobre o Brasil e eu estou sozinha tentando compensar os buracos nos meus corações tapando outros no cérebro e que metáfora horrível
Também é interessante observar como aquele era um período político terrível. Ana Cristina Cesar morou na Inglaterra durante parte da ditadura militar brasileira. Eventualmente, ao terminar os estudos, ela voltou ao Brasil, mas seu namorado, não. Luiz Augusto teve o passaporte apreendido pela embaixada brasileira na Alemanha por ter participado de um protesto contra a ditadura. Ele não pôde voltar ao país - e estabeleceu a vida em solo alemão. O namoro foi rompido, e demorou muitos anos para que ambos pudessem se reencontrar, embora o romance nunca tenha sido reatado.
Em várias cartas, Ana fala sobre como a BBC passava notícias do Brasil, dos documentários a respeito da ditadura que eram exibidos, de como as rodas de conversa acabavam convergindo para esse assunto. Era uma preocupação constante - mas distante. Embora a vida como brasileira estivesse diferente, ela ainda era uma adolescente descobrindo o mundo e vivenciando as dores de um amor à distância. E sendo uma pessoa em posição privilegiada - intercambista em Londres -, ela podia dispersar a mente da terrível realidade e pensar no amor, embora o contexto político da época sempre estivesse presente de alguma maneira.
Além disso, ela questionava por que na escola ninguém ensinava nada concreto a respeito da África, América Latina e do Brasil. Uma realidade tão próxima à nossa não era nem cogitada nas tradicionais salas de aulas inglesas em 1969.
"Modern History é a melhor aula. Só tem quatro alunas e as outras três não sabem nada. A prof. parece ser muito aberta e nós vamos estudar todo o séc. xx, Europa, guerras, Revolução Russa, Revolução Chinesa, Mao, Vietnã, usa etc. Quando eu perguntei cadê a África e América Latina, ela disse que não sabia nada sobre as duas. E foi a milésima pessoa a me perguntar se eu falava espanhol no meu país. A ignorância era tanta que ela acabou me convidando para, um dia, dar uma aula sobre o Brasil."
Embora escrevesse muitas cartas, Ana ainda não era a poeta que viria a ser, mas seu estilo poético já estava se construindo. É fácil notar, ao ler as cartas e os poemas de Ana Cristina Cesar, como a adolescente apenas desenvolveu o que já estava ali, ampliando seus questionamentos, o uso livre da língua portuguesa, o fluxo de pensamento escrito de forma corrida, sem grandes preocupações com estilo.
É claro que havia uma estética, mas a estética era a da desordem: se os sentimentos são um caos, que a escrita também o seja; se o mundo é absurdo, então para que fazer sentido? O encadeamento dos parágrafos acompanha essa linha de pensamento, refletindo a mente agitada de Ana.
"Dói te escrever, eu não queria ter estilo nenhum te escrevendo, eu não queria me revestir de lápis e estilo, eu não queria tentar nada, eu queria te escrever como se eu te beijasse, o tempo caiu. Eu queria te escrever como se eu te mandasse um cartão de uma paisagem mágica cheio de tiamos. Eu te amo, eu te amo, eu te preciso, eu te sou, tento. Eu queria te escrever (luiz, luiz, estou soletrando em desconsolo) duas linhas, ou uma palavra. Eu não quero lembrar de nada, não posso te pensar como uma lembrança. Mas quando eu esqueço as minhas contenções e racionalizações e colocações e proposições e estou deitada de bruços esperando o sono como se te esperasse, aí eu te lembro devagar ou em tropelia, aí eu tento fingir que estou deitada de bruços te esperando, aí eu. Não posso, não posso te escrever. eu não posso escrever esse meu amor. eu não posso te amar por essas cartas. Eu te amo todo, toda. Me sinto anormal e manca nestes dias enormes. É, o tempo caiu, perdi o tempo."
Ana suicidou-se em 1983, aos 31 anos. Guardadas por quase cinquenta anos, Luiz Augusto não tocou em suas cartas por muito tempo. Mas no início da pandemia, ele teve um sonho com Ana Cristina, que lhe apareceu como uma senhora, na idade que teria se estivesse viva. “Era uma situação positiva, feliz. Eu conversava com ela e perguntava por que ela tinha se retirado, desaparecido, onde ela esteve esses anos todos. Ela só me dizia que era melhor assim.” Foi daí que partiu o desejo de publicação. Luiz acredita que Ana Cristina Cesar estaria feliz por ser conhecida pelos seus leitores.
As cartas, que haviam sido datilografadas nos anos 1990 e entregues à mãe de Ana, passaram a morar no Instituto Moreira Salles, local que guarda boa parte da memória da poeta. Agora, encontram um público que pode, finalmente, ter um vislumbre íntimo da Ana C. aos 17 anos, quando começava sua trajetória enquanto escritora.