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Nossa, esse livro mostra como Juliana Leite é uma potência da literatura nacional contemporânea. Com uma escrita magistral a autora apresenta uma história carregada de emoção, sentimentos e reflexões necessárias.
Escrito em prosa lírica, a autora faz uso incomuns de artigos, pronomes, metáforas, numa sucessão bem feita e que além de trazer mais fluidez para a obra, revela questões reflexivas que dialogam fortemente com diversos âmbitos da sociedade.
Mal posso esperar para ler mais livros da Juliana Leite!
Em “Por que escrever”, Philip Roth é perguntado sobre como ele começa um novo livro;
— Começar um livro é desagradável. Não tenho nenhuma certeza sobre os personagens e o problema central, e é disso que preciso para dar a partida (...) Datilógrafo começos e eles são pavorosos, (...) Necessito de alguma coisa que seja a linha central, um ímã que atrai tudo.
Reconheço o mesmo sentimento de Roth quando me debruço para colocar minhas impressões de determinados livros no papel.
Em Humanos Exemplares de Juliana Leite (@companhiadasletras) dispensei inúmeros começos. Pensei em iniciar o texto falando sobre a velhice, todavia estamos falando de uma história onde a protagonista beira seus 100 anos de vida. Achei clichê
Pensei em abordar o olhar detalhista da narradora que considera essa permanência e insistência na vida como uma locução adverbial “por enquanto”:
-muitos já sumiram e até agora por algum motivo ela permaneceu, ela se sente assim, como alguém que permaneceu, por enquanto
Faço um elo entre os versos do Renato Russo eternizados na voz da Cássia Eller: “Mudaram as estações, nada mudou/Mas eu sei que alguma coisa aconteceu/Tá tudo assim, tão diferente”.Entretanto, nenhuma dessas ideias me satisfaz.
Recorro ao que o texto mais me atraiu, que fora o sentimento de solidão. Questiono se a solidão é um sentimento exclusivamente da velhice.Porque em determinados momentos me reconheci na figura de Natalia, uma mulher velha que passa os dias reclusa em seu apartamento à espera de telefonemas da filha que mora em outro país. E dentro desses cômodos, configura quase em uma paisagem entre os móveis e memórias onde “quase nada se move”.
Juliana Leite cria uma história onde o tempo rasga inúmeros sentimentos e temas do nosso cotidiano; reclusão, amor familiar, memórias, corpos, preconceito, estão todos aí confabulando aos olhos daqueles que se deixam ser esculpidos pelas palavras.
O leitor assume o papel de um personagem fantasma descrito nas páginas de Humanos Exemplares, um espião que observa pela janela com uma curiosidade inconveniente e peculiar toda essa cartografia de uma vida. Uma vida não gasta como a sola de um sapato. Mas vivida em inúmeros desafios
Essa vai ser uma resenha diferente, de um livro bem diferente com uma personagem mais diferente ainda. Quantas obras você já leu cujo protagonista é um idoso? É algo tão óbvio, mas ao mesmo tempo foge do que estamos acostumados. Aliás, devo falar por mim, baseado em tantos livros que já li, poucos foram contados por uma senhora (ou nenhum, talvez).
E aqui estamos diante da minha xará, Natalia. Uma mulher bem velhinha, passa os seus dias em seu apartamento à espera de telefonemas da filha que reside em outro país. Viúva. Última sobrevivente do seu ciclo de amigos. Ela só tem a si, pois é assim que se sente em grande parte do seu tempo. Apenas quando o telefone toca que as coisas melhoram um pouco.
“Ainda é cedo para dizer por que ninguém mais telefona para ela, mas aparentemente todo mundo que tinha seu número e que gostava de conversar já morreu. Um a um eles morreram, cada um a seu tempo.”
Vicente, companheiro dela, era professor de geografia e foi perseguido pela ditadura. Sarah, sua melhor amiga, era uma mulher de temperamento impossível e dona de uma loja de biscoitos. Jorge, um morador de rua, lia cartas prevendo o futuro e recebia doses de Campari em troca. E a sua filha, bem, ela continua em outro país, mas nunca esquece um dia sequer de ligar para a sua querida mãe.
O contexto da história é bem triste. Não é uma leitura rápida, pois não há diálogos. É um livro de “apenas” memórias – e digo “apenas” porque não é somente algo raso e insosso. Às vezes é bem pesado ler algumas partes, em outras é até possível sorrir pelos detalhes. Porém, em grande parte a gente fica imerso e refletindo quem somos e para onde vamos.
Não é uma leitura que provoque alegrias ou que deixe o leitor satisfeito. Pelo contrário, como você se imagina daqui a uns 30 anos? E se você se deparasse sozinho, sem uma pessoa ao seu lado? Acordar sem ninguém ao seu lado e um vazio dentro de si. É uma narrativa reflexiva e pesada.
É triste ler e imaginar que isso é o destino de todos nós. Acredito que o maior medo do ser humano seja a solidão. É difícil fugir disso quando a idade chega. Quando as pessoas que você ama precisam partir, ou simplesmente partem sem precisar – como temos visto com a pandemia.
Ainda que a história tenha me prendido, a repetição dos vocativos e outras coisas acabam deixando o ritmo arrastado da metade para o final. Embora do início até a metade eu tenha devorado, o restante foi mais compassado.
“Ela adia a abertura do jornal e molha o pão no café com leite bem quente. Morde a ponta molhada do pão onde a manteiga está derretida e logo sente aquilo que mais desejava nesta manhã, a gordura salgada tomando a superfície da língua. A gordura é generosa e a velha se arrepia inteira, é sempre assim, uma gordura quente e salgada faz uma velha como essa arrepiar todos os pelos de manhã cedo. Ela sente o grande prazer do pão molhado entre os dentes e de repente fica um pouco encabulada. Talvez devesse pedir autorização por escrito a alguém para, além de seguir viva a essa altura, ainda por cima sentir prazer na língua, talvez esse fosse o procedimento correto, ver se ainda é permitido aos humanos revirar os olhos de delírio. Mas agora é tarde, ela já mordeu o pão e já sentiu o prazer engordurado invadindo o corpo, de alguns gozos não se pode voltar atrás.”