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A Bruxa de Portobello: o sagrado e o êxtase feminino
Paulo Coelho é um dos escritores mais lidos do mundo. Carioca e membro da Academia Brasileira de Letras, muitos de seus livros abordam a espiritualidade e o feminino, algumas vezes os dois temas ao mesmo tempo, como é o caso de A bruxa de Portobello, lançado em 2006, que, ao lado de O alquimista e Brida, é um dos mais consagrados livros do autor.
A protagonista da história é Sherine Khalil, conhecida por todos como Athena. Mesmo que Athena seja o ponto central da trama, o leitor não tem acesso ao seu ponto de vista, pois o livro é em formato de entrevista e quem conta a história de Athena são as pessoas que passaram por sua vida durante sua jornada. Mestres, jornalistas, atrizes, amantes, padres, mães. Pessoas que expõem pontos de vista diferentes em relação a mesma situação e sobre a própria Athena.
Um longo caminho foi percorrido até Athena ser conhecida como uma bruxa famosa; tudo teve seu ápice em Portobello Road, que é uma rua no bairro de Notting Hill, em Londres, bem longe da terra natal de Athena, a Transilvânia, o lugar mundialmente conhecido por seu mito sobre vampiros, principalmente o Conde Drácula, e que tem uma longa história de violência com guerras civis, ditadores, perseguição a bruxas e aos povos ciganos. Na Transilvânia uma Athena recém-nascida foi deixada em um orfanato por sua mãe biológica. Adotada por um casal de libaneses, recebe o nome de Sherine Khalil e o apelido de Athena ainda criança. É em Beirute que Athena começa sua longa jornada em busca do sagrado e é lá que tem suas primeiras visões e também descobre que existe um inquietamento dentro de si, que, mesmo não completamente, apenas a música e a dança conseguem aplacar. Quando Athena e os pais se mudam para Londres, refugiados de uma guerra civil no Líbano, sua busca por si mesma de fato começa e ela nota que o sagrado e o êxtase podem trabalhar em conjunto. Em um trecho do livro, é dito:
"E a melhor maneira de saber quem somos, muitas vezes, é procurar saber como os outros nos veem. [...] Recuperar sua história. Escrever o seu mito."
O caminho que Athena percorre atrás do amor e de sua origem é contado por todos aqueles que sua presença tocou de alguma forma, para o bem e para o mal. É assim que sua imagem e seu mito começam a ser escritos, e ela se torna plural. Uma mulher única que foi todas as coisas:
"Nós, as mulheres, quando buscamos um sentido para nossa vida, ou o caminho do conhecimento, sempre nos identificamos com um dos quatro arquétipos clássicos. A Virgem (e aqui não estou falando de sexualidade) é aquela cuja busca se dá através da independência completa, e tudo que aprende é fruto de sua capacidade de enfrentar sozinha os desafios. A Mártir descobre na dor, na entrega, e no sofrimento, uma maneira de conhecer a si mesma. A Santa encontra no amor sem limites, na capacidade de dar sem nada pedir em troca, a verdadeira razão de sua vida. Finalmente, a Bruxa vai em busca do prazer completo e ilimitado — justificando assim sua existência. Athena foi às quatro ao mesmo tempo, quando devemos geralmente escolher apenas uma destas tradições femininas."
Uma espécie de nova Inquisição começa a se formar ao redor de Athena, e no início do livro já sabemos de sua morte prematura. As fogueiras, enforcamentos e torturas são substituídos por entrevistas maliciosas, ataques de representantes do Vaticano e ameaças de retirar a guarda de seu filho, Viorel, a pessoa a quem Athena mais ama no mundo. As pessoas que recontam a história de Athena dão ao leitor a experiência de conhecê-la por completo, de forma intensa e ambígua. Athena foi mãe, o amor da vida de muitos, vendedora de terrenos em Dubai, filha, funcionária de um grande banco, manipuladora, cruel, gentil, uma cigana romena, sacerdotisa em Londres, uma santa, uma bruxa, uma mulher, um mito. E sua busca pelo êxtase e o sagrado existe há muito tempo, não apenas por Athena, mas por diversas outras mulheres.
"No culto da Grande Mãe, o que chamamos de 'pecado', geralmente uma transgressão de códigos morais arbitrários, deixa de existir; sexo e costumes são mais livres, porque fazem parte da natureza, e não podem ser considerados como frutos do mal."
O sagrado e o êxtase feminino
A sexualidade, liberdade e independência feminina sempre criaram um grande embate na sociedade patriarcal e cristã. A Grande Mãe, principalmente no paganismo, é uma das mais importantes figuras referenciadas, e em A bruxa de Portobello não é diferente. Mas as santas, como Santa Sara, padroeira dos povos ciganos, e a Virgem Maria, também têm seu espaço na trama. Principalmente Santa Teresa, por conta de uma passagem em sua autobiografia, A vida de Teresa de Jesus (1515-1582). Ao produzir a obra O êxtase de Santa Teresa (1647-1652), Gian Lorenzo Bernini utilizou a passagem do diário de Santa Teresa como base, o que resultou em uma escultura polêmica, que retrata a Santa em estado de êxtase sexual, recebendo a flechada do anjo. Expondo a já evidente e muito debatida relação entre o cristianismo e a sexualidade, o "profano" e o sagrado. Como se a Santa entrasse de fato em êxtase e em transe ao receber a flechada do anjo, uma espécie de falo sagrado:
“Eu vi em sua mão uma longa lança de ouro e, na ponta, o que parecia ser uma pequena chama. Ele parecia para mim estar lançando-a por vezes no meu coração e perfurando minhas entranhas; quando ele a puxava de volta, parecia levá-las junto também, deixando-me em chamas com o grande amor de Deus. A dor era tão grande que me fazia gemer; e, apesar de ser tão avassaladora a doçura desta dor excessiva, não conseguia desejar que ela acabasse. A alma está satisfeita agora, com nada menos que Deus. A dor não é corporal, mas espiritual; embora o corpo tenha sua parte nela. É uma carícia de amor tão doce que agora acontece entre a alma e Deus, eu oro a Deus por Sua bondade para fazê-lo experimentar naqueles que podem pensar que estou mentindo."
Falando sobre deuses gregos, além de dar nome à personagem principal do livro, Atenas é o nome da capital da Grécia, mas também da deusa grega da sabedoria e da guerra. Mas vamos focar em outro deus, um dos irmãos mais novos de Atena, Dioniso, filho de Zeus e da humana Sêmele. Dioniso é o deus do êxtase, do vinho, da loucura, da transformação e do teatro. Atena e Dioniso têm pouco em comum, além do curioso fato de ambos terem nascido diretamente de Zeus. A mitologia diz que Atena nasceu de sua cabeça, enquanto Dioniso foi gerado na coxa de Zeus após a morte prematura de Sêmele. Esta é a história do nascimento do segundo Dioniso, o primeiro era filho de Zeus e Perséfone, e teve seu corpo dilacerado por Titãs a mando de Hera. Muito da iconografia de Dioniso envolvendo a dilaceração, como em A história secreta, de Donna Tartt, e As bacantes, de Eurípides, tem em suas tramas esse importante rito do deus grego. Rito que também incorpora a mitologia de seu primeiro nascimento e morte. Dioniso também é o grande senhor dos bacanais, festivais realizados em sua homenagem nos quais a aproximação do divino é encontrada através do sexo, das danças e no consumo de substâncias alucinógenas, como o popular vinho. E é a dança que faz Athena finalmente encontrar o êxtase e o divino ao mesmo tempo:
"— Você sabe o que quer dizer a palavra 'êxtase'? Ela vem do grego, e significa: sair de si mesmo. Passar o dia inteiro fora de si mesmo é pedir demasiado do corpo e da alma. [....] Sabe o que eu descobri? Que, embora o êxtase seja a capacidade de sair de si mesmo, a dança é uma maneira de subir ao espaço. Descobrir novas dimensões, e mesmo assim continuar em contato com seu corpo. Com a dança, o mundo espiritual e o mundo real conseguem conviver sem conflitos. Acho que os bailarinos clássicos ficam na ponta dos pés porque estão ao mesmo tempo tocando a terra e alcançando os céus."
O que torna a presença de Dioniso importante aqui é que seu culto é realizado quase exclusivamente por mulheres e gira em torno justamente do êxtase feminino. No que diz respeito a bruxaria, sua proximidade com Pã, os touros e os sátiros torna Dioniso equivalente ao deus cornífero, e seus bacanais muitas vezes são comparados com os Sabbaths, assim como suas fiéis seguidoras, as bacantes, com bruxas. Por Zeus ter terminado sua gestação após a morte de Sêmele, Dioniso é considerado um deus e não apenas um semideus, mas, mesmo assim, ele é o deus que mais se aproxima dos homens e está profundamente ligado à natureza. A relação do deus grego com Jesus Cristo é amplamente difundida também, não apenas por serem filhos de deuses com mulheres humanas, e, para além do vinho e da ressurreição, nas festas e cultos a Dioniso o sacrifício de um touro e a ingestão da sua carne e seu sangue, trazendo à ideia a morte do primeiro Dioniso, para estar em total e completa harmonia com o deus, tem semelhanças com ritos cristãos. E assim como Cristo, o grande papel de Dioniso era de rasgar o véu que separa deus dos homens:
"Antes de Dioniso, costumava-se dizer, havia dois mundos: o mundo dos homens e o inacessível mundo dos deuses. A metamórphosis foi exatamente a escada que permitiu ao homem penetrar no mundo dos deuses. Os mortais, através do êxtase e do entusiasmo, aceitaram de bom grado 'alienar-se' na esperança de uma transfiguração."
(Junito de Souza Brandão)
Filha de cristãos devotos, Athena procura primeiro o divino através da Igreja. Como disse sua mãe, ela ensaiava danças e fingia entrar em transe após aprender sobre a vida dos santos no colégio. Mas após se desiludir e não receber apoio quando mais precisava, ela passa a se sentir perdida, até encontrar novamente na dança a atividade que é capaz de levá-la além do mundo acessível aos homens. Com as danças sagradas do culto que se forma ao redor de Athena, a energia compartilhada ajuda a superar seus próprios limites, ultrapassando a barreira entre o sagrado e o mundo humano, caos e equilíbrio, a natureza e si mesma. Assim, ela finalmente se torna uma poderosa sacerdotisa, desequilibrando a moral cristã e patriarcal da religião. É quando Athena passa a ser vista como um perigo por quem está de fora:
"A experiência religiosa do culto dionisíaco, ao invés de integrar passivamente as pessoas nos seus supostos devidos lugares, visa projetá-las para fora desse âmbito normativo através do êxtase, associando-se ao divino na interação sagrada que suprime a diferença de identidade entre ambos os pólos. O êxtase é uma experiência da desmedida, pois arranca o ser humano da sua condição natural, levando-o para a dimensão divina. A poderosa vivência dionisíaca estabelece a fusão entre todos os indivíduos, através das suas danças e dos seus cantos sagrados, tendo em vista a celebração da grande unidade da natureza, a mãe originária de todas as coisas existentes [...] Eis um dos motivos pelo qual as mulheres eram as grandes líderes dos cultos báquicos, pois que elas, subjugadas pela potência do homem do estado apolíneo, se encontravam em segundo plano no âmbito social instituído pela autoridade do gênero masculino. As mulheres invertem as premissas dessa ordem estabelecida pela autoridade viril e proclamam assim um novo modelo de vivência, cujas bases valorativas se sustentam na louvação da força criadora da natureza, ela própria uma espécie de grande mãe cósmica."
(Renato Nunes Bittencourt)
À medida que Athena se torna uma grande mãe cósmica, sua imagem como "bruxa" começa a circular na imprensa. A ideia de possessão e do êxtase sagrado é vista por alguns com desconfiança e por outros com curiosidade. Ao notar que a imagem que criaram a seu respeito se torna cada vez mais poderosa, Athena percebe o perigo e a tragédia que poderia vir a acontecer. Ela perderia não apenas seu filho, mas também se tornaria uma mártir, e não era isso o que ela buscava.
Athena representa uma mulher como muitas outras, que viveu para encontrar o amor, mas também o equilíbrio e a harmonia entre si mesma e a natureza. O transe e o êxtase a ajudaram a se conectar com outra realidade, mas também consigo mesma e seu passado para apenas assim encontrar seu caminho no futuro - seu próprio futuro e o dos outros, que conseguia enxergar tão claramente. Com os olhos fechados e dançando na batida da melodia de sua alma, Athena se tornou uma lenda, não apenas uma sacerdotisa de Dioniso no mundo moderno, mas plural e transformadora assim como ele, se tornando todas as coisas: bruxa e santa, mãe e filha. Mas principalmente ela mesma.
"— Quando danço, sou uma mulher livre. Melhor dizendo, sou um espírito livre, que pode viajar pelo universo, olhar o presente, adivinhar o futuro, transformar-se em energia pura. E isso me dá um imenso prazer, uma alegria que está sempre muito mais além das coisas que já experimentei, e que terei que experimentar ao longo de minha existência."
Referências
Dionisismo: imanência e afirmação da vida indestrutível (Renato Nunes Bittencourt)
Oh! Ide, Bacantes!: a participação feminina em rituais dionisíacos (Amanda Martins Rodrigues)
Mitologia Grega. Vol. II (Junito de Souza Brandão)