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um livro cronicamente online necessário.
“virginia mordida”, de jeovanna vieira, é um romance brasileiro contemporâneo centrado em virginia, a nossa protagonista é uma mulher negra independente, forte, decidida, com uma carreira profissional consolidada, com família e amigas presentes. porém, toda a sua rede de apoio não é o suficiente para evitar com que ela se veja em um relacionamento abusivo.
trabalhando um dos problemas atuais e urgentes da sociedade brasileira, a violência contra a mulher em seus vários espectros, a autora aborda as questões subjetivas que leva uma mulher ficar refém de um relacionamento que tira o brilho, a vontade de vida e o amor próprio. o aniquilamento pela perversidade de um outro - homem ou mulher. virginia adentra nesse vórtice destrutivo de maneira consciente, pois sabe que por mais que henrí seja atraente e agradável, ele emana um narcisismo, violência e o patriarcalismo. porém, que a atração foi tão fatal que ela não consegue ficar se sair desse ciclo abusivo, é como canta raça negra, “não era amor, era cilada”.
o livro engata bem a narrativa, prende tua atenção com os capítulos curtos, é impossível de parar de ler até chegar ao fim libertador de virginia. me tirou de uma ressaca literária horrível que eu estava, então é uma leitura que recomendo sem receios. contudo, percebo uma certa limitação no livro como a falta de complexidade ao tratar do tema do relacionamento abusivo, como também as das próprias personagens em que alguns casos são rasas e com frases prontas de efeito. por isso, digo que o livro é cronicamente online pelas frases e pensamentos presentes na escrita, por serem identificados de pessoas que consomem muito conteúdo online e suas respectivas simbolizações. por um lado mostra-se ser interessante, pois aproxima ao leitor contemporâneo. por outro lado pode ser negativo, pois pode ser maçante, como uma thread no finado twitter.
com o seu romance de estreia, jeovanna vieira mostra que a literatura brasileira está viva e multifacetada.
A resenha conterá spoiler.
Eu chamei a escrita desse livro de uma prosa carismática. Não tem linguagem rebuscada, não tenta ser cult, é direto e reto e por isso, para mim, cativante e muito próximo. A sensação de uma conversa com uma amiga, uma amiga fazendo merda, mexendo com o boy errado, vai até mais ou menos metade do livro, porque depois disso, aí é ladeira abaixo no quesito tristeza, angústia e vontade de puxar a Virgínia e dizer: vamos, mana, vamos para a clínica psiquiátrica! E antes disso, dá uma boa surra no tal Henrí.
Exceto pela relação com o Henrí, as outras relações são muito boas de acompanhar. A família dela é muito bonita, muito próxima e cheia muito orgulho de ser quem são e como são, acho que aqui temos um ótimo exemplo da retratação do que é um aquilombamento urbano. A família é uma força de Virginia, mesmo quando ela se perde de si.
Como uma pessoa que já viveu um relacionamento abusivo, eu ficava com a sensação não só de incômodo, como de cansaço em todas em todas as aparições do Henrí. Que macho insuportável. Na segunda metade do livro a sensação de cansaço virou angústia e tristeza por acompanhar a Virgínia se afundando cada vez nessa relação horrível e se perdendo completamente de si por causa de um homem que a constrangia, violava sua vida privada, embotava todas as suas relações e abusava física, sexual, psicológica e materialmente dela.
É desesperador ver Virginia indo cada vez mais para o fundo do poço, vê-la se convencer de que aquele relacionamento doentio é um amor de verdade, mas que não está funcionando porque ela está errando em não saber recebe-lo, vê-la se culpar pelas violências que sofre, assistir Henrí degradá-la cada vez mais e ela, mesmo ciente de que está errado, ainda conseguir achar em si justificativa para continuar com agressor, persistir nesse amor torto.
Como é um relacionamento interracial entre um homem branco e uma mulher preta, há ainda o recorte racial permeando as violências que Virginia sofre.
O final eu não gostei muito, mas tenho consciência que é uma questão de gosto. A intenção de fazer uma peça de teatro em que Virginia revisita seu trauma e mata o seu agressor em diferentes contextos, tendo assim um desfecho para sua história é interessante, mas não funciona comigo.
Acho que não consegui dizer tudo que gostaria desse livro, mesmo tendo passado dois dias refletindo sobre ele. Recomendo muito a leitura.
Abaixo algumas citações do livro:
“Mas no fim essa coisa de tratar os estrangeiros como menos danosos que os domésticos, trata-los como café com leite, tem isso de fazer a gente se decepcionar de uma nova forma. Eu sabia, mas quis um pouco dessa miragem.”
“Não é perigoso que os adultos se permitam viver essa dose de fantasia, empregando os sempres, os nuncas, os jamais em qualquer frase, como se acreditassem no seu significado? Minha maneira de amar era menos de prometer, combinar, de ter tratados.”
“O que os relacionamentos de abuso de confiança têm em comum é: os manipuladores são adoráveis. Eles são sempre apaixonantes, nos fazem pender a balança ao seu favor, porque são pacientes. Nos envolvem tal qual uma constritora antes de nos sufocar. Eu sei o que a cobra que arrodeou no meu corpo queria. Você sabe o que a sua serpente quer?”
“Não posso passar muito tempo nesse estado de vazio, o vazio ocupa espaço demais.”
“Amar é menos se encontrar com o outro e mais não se perder de si.”
“Levar aquele homem para casa é como recolher o cocô do cachorro na calçada. Muito mais um ato cívico para que outras pessoas não se sujem do que vontade de ir com ele a qualquer lugar.”
“Diz que quem ama não machuca, não expõe, não tripudia, não estupra, não rouba, não desampara, não destrói, não recalca, não inveja, não cobiça, não abusa, não morde, não arranca pedaços. Sigo sem saber se existe amor. A gente pratica o amor de quem ama demais, essa é a anistia do abuso.”
“Como era possível? Eu, com quase trinta e oito anos, sagaz da vida, filha de militante, sofrendo violência doméstica? Não conseguia me encarar, me mostrar para outra pessoa.”
“Você acha que ele não me amou, Maya? Vi, como não te amar?, a questão é que um cara desses não sabe amar.”
VERTIGINOSO, DE FATO!
Vertiginoso é um adjetivo geralmente associado ao livro de Jeovanna Vieira e sim, ela cria uma narrativa vertiginosa de ler e para ler, porque começamos e não queremos mais largar essa estória, até chegar ao seu final.
Com capítulos curtos e ligeiros, imprime um ritmo dinâmico, ágil e intenso à leitura. No desenrolar da estória, ela vai e vem na linha do tempo, rememora, reconta... tece, costura e mescla as lembranças com o que está vivendo no momento presente, imprimindo fluidez e dinamismo ao que é contado.
Um livro difícil, doloroso, desconfortável, mas ultra necessário, que descreve uma relação interracial com um indivíduo narcisista: Virgínia é uma mulher negra bem-amada pela família (embora tenha crescido com pai ausente/desconhecido), inteligente, e muitíssimo bem-sucedida profissional e financeiramente. Mas cai na teia insidiosa de um Narcisista Vulnerável, um ator estrangeiro que usa sua história de vida com a mãe abusiva como cartão de visitas. O sujeito está no ponto cego mais obscuro de Virgínia, que fica completamente fascinada e hipnotizada por ele.
Conforme acompanhamos o desenrolar desse romance abusivo, a angústia se acumula, porque é uma história conhecida demais, comum demais e percebemos que muitas de nós já estiveram lá nesse lugar tenebroso, sujeitadas pela paixão ao fascínio por essa serpente sedutora do narcisista/manipulador. Pode acontecer com qualquer uma de nós; qualquer pessoa - mais notadamente com mulheres - que não tenha uma autoestima saudável, uma estruturação emocional forte e equilibrada. E mesmo uma mulher/pessoa emocionalmente saudável não está isenta de cair na teia de um parceiro narcisista, pois todos temos nossos pontos cegos. O resultado pode ser aniquilamento psicológico, do qual é muito difícil se recuperar depois. Em casos mais trágicos até mesmo morte - vide os altos e nefastos índices de feminicídio no Brasil e no mundo.
Com a sua narrativa intensa e brutalmente honesta, Jeovanna nos presta um grandissíssimo serviço de observação e reconhecimento dos sinais que esse tipo de relação tóxica e abusiva vai mostrando ao se construir. E assim ela nos ajuda a ficar atentas e observar tais sinais, para podermos pular fora antes que seja tarde demais - O "Violenciômetro" que ela traz ao final é uma verdadeira pérola de alerta a se observar!
De brinde, ainda ganhamos a ambientação nas cidades maravilhosas de Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, além da homenagem à cultura afro através das festas, celebrações e costumes descritos em algumas passagens.
Que estreia formidável, Jeovanna! Que seja somente o primeiro de muitos!
Parabéns e muito obrigada!
Ganhei da NetGalley/Companhia das Letras! Muitíssimo agradecida, Cia. das letras e NetGalley!
4/5 - Excelente!
Virgínia se vê envolvida em um relacionamento tóxico e abusivo com Henrí, um ator argentino. O texto do livro é composto de capítulos breves, o que faz a leitura ser fluida apesar de toda complexidade dos assuntos abordados. A autora nos faz, através de sua escrita sensível e tocante, refletir para uma necessidade de afastamento de relações que nos diminuem.
Uma vez, eu ouvi que precisamos de mais livros em que os personagens são pretos, mas a história não é sobre ser preto - e eu acredito que "Virgínia Mordida" caia nessa definição. Obviamente, não dá para uma história com personagens pretos não ser trespassada pelo racismo estrutural ou por questões sociais gravíssimas, e no livro de Jeovanna Vieira vemos isso, mas há também outras dimensões.
É uma história contemporânea, urbana, de mulheres - e no começo da narrativa parece quase forçado demais o posicionamento da personagem principal, Virgínia, como bem sucedida, uma família bem estabelecida, que a bisavó (ou tataravó?) era uma parteira renomada, e a mãe é engenheira - não estamos na periferia do Rio de Janeiro (de onde é a família) ou de São Paulo (onde Virgínia vai morar e conhece o namorado, Henrí).
Depois, quando já nos posicionamos bem com os personagens - Virgínia, o ex-marido, as amigas, o namorado novo, a família, etc - a trama flui melhor, e a mordida do título acaba por doer também em nós.
A trama é sobre abuso, e quais são os mecanismos que permitem que ele ocorra - e que não há formação, educação ou amizades bem intencionadas que possam salvar alguém.
*Eu agradeço a editora Companhia das Letras pela cópia em troca da publicação de uma resenha.