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Algumas histórias precisam ser contadas para lembrarem a história de nosso passado quanto nação e também as formas como nossa sociedade errava, tudo em prol para que nunca mais cometamos os mesmos erros. É uma questão fundamental: aprender com o passado para sermos melhores no futuro, mas talvez no Brasil não tenha aprendido muito como sociedade. Tratando sobre a forma como muitas funcionárias domésticas eram tratadas sem nenhum direito trabalhista e mandadas embora ao bel prazer dos “chefes”, temos em “Casa de família” o termo exato como muitas destas mulheres se referiam ao seu trabalho: trabalhar em uma casa de família era quase que um atestado de um emprego estável, com boas pessoas – supostamente. Mas será que na prática era assim?

Já falei em outras resenhas que a literatura nacional passa por uma fase genial e plural, e não poderia deixar de incluir a autora Paula Fábrio em seu primeiro livro publicado pela Companhia das Letras, com quem tive o prazer de conversar ontem à noite – mas deixo claro que este não é o primeiro livro da autora, já premiada, e que definitivamente procurei para ler mais títulos de sua autoria. Em uma trama que nos apresenta uma realidade que muitos viveram, seja com suas próprias mães sendo funcionárias na casas de outras famílias, sendo nossas mães as que contratavam essas mulheres, vamos aprendendo que todas essas pessoas podem passar por nossas vidas, mas deixam pequenos pontos que se somam ao retalho de pontos, vírgulas e travessões que compõem nossa vida, sempre se perpetuando, mesmo que nem ao menos saibam. E nesse aspecto, temos uma narrativa magistral.

Como a sinopse traz, aqui temos a história de Soraia, que vive em São Paulo, em 2019, época pré-pandemia. Soraia nasceu em 1970 e agora procura encaixar a peças do seu passado para entender o que poderia tentar salvar no futuro, já como tem medo de perder suas memórias. O ponto aqui é que o passado de Soraia tem vozes e sons e tons – todos dessas mulheres que moraram em sua casa, funcionárias que atuavam na limpeza e cuidado diário de sua mãe.

A vida da mulher, ainda quando jovem e recém-chegada a adolescência aos 13 anos, foi marcada por uma fatídica noite na qual sua mãe adoeceu. Em uma jornada repleta de dificuldades e sensações que entendemos através dos olhos de uma jovenzinha assustada, mas também mimada e protegida por seu mundo, Soraia vai nos apresentando a dor de conviver com alguém de nossa família direta que é possuidora de uma doença crônica autoimune incurável. E foi dilacerante ler sobre porque a família perdeu financeiramente a pouca estabilidade que tinha, mas também perderam parte de sua humanidade ao ver a matriarca se deteriorar diante de seus olhos.

Na minha leitura, ocorreu algo que normalmente não acontece com facilidade: dividi a leitura em 3 grandes colunas, por assim dizer. Uma era o passado de Soraia, que acontecia durante 1983 e vai correndo nos anos posteriores, a segunda o presente da personagem e seu medo de perder suas memórias, sua procura por entender seu passado e encontrar sentido em coisas que evita pensar, e a terceira é a doença de sua mãe, que tomou grande parte da narrativa para mim – falarei sobre mais a frente.

Uma coisa que me chamou atenção desde começo é a primeira parte: jovem em um Brasil que sofria uma das maiores inflações do mundo, que o valor de um produto no supermercado não era o mesmo à noite e diversos alimentos simplesmente não eram mais ofertados aos consumidores, que passou pelas eleições de 1990 e pela promulgação da Constituição Federal de 1988 e que viveu a falta que a democracia é capaz de nos fazer, Soraia está começando a temer perder sua memória do seu passado, algo que talvez estejamos passando agora, todos nós, como sociedade. Como podemos esquecer nosso passado? Como abri esta resenha, algumas histórias precisam ser contatas e a contextualização de nosso passado no qual a protagonista vive é simplesmente maravilhosa, uma lembrança que não devemos perder – e nem Soraia deve perder as memorias de sua própria vida.

Já a segunda “parte”, temos o relacionamento complexo e tóxico com Toninho, irmão de Soraia, uma figura central em suas lembranças por sua falta de empatia generalizada e egocentrismo. Acreditando merecer o universo, o irmão mais velho (bem mais velho, mais de 10 anos) de Soraia parece só se preocupar com ele próprio em uma casa que está ruindo. O pai da protagonista parece aceitar o destino que a vida lhe entrega enquanto continua sua obrigação de prover financeiramente a família da forma como pode, providenciando as funcionárias necessárias para o dia a dia continuar acontecendo enquanto começa a se afastar emocionalmente de tudo que vive.

Mas são as vozes já citadas destas mulheres trabalhadores, normalmente idas do meu nordeste para São Paulo, que realmente mostram outro mundo ao leitor. Diversas mulheres com histórias de vida em diferentes formas passam por aquela casa, testemunhando a vida como ela é, os relacionamentos que ali existiam e ajudando a manter a mãe de Soraia com o mínimo de dignidade possível. E todas essas mulheres deixam vontade de saber seus destinos, de conhecermos mais e entender qual caminho trilharão depois que seu tempo naquela casa de família acabou. Há diversas personagens marcantes, e algumas marcadas por apelidos nada gentis – Lourdes gorda por exemplo – e que foram tratadas com menos gentileza ainda. Talvez esse seja o ponto alto do livro: nos fazer pensar sobre nossas atitudes quando não tínhamos ainda noção do mundo ao nosso redor, mas deveríamos ter praticado a gentileza.

Já na terceira “parte”, para mim, me leva a lembrar que livros são como pessoas: algumas simplesmente trazem a tona coisas que não queremos ou sabemos lidar, e “Casa de família” fez isso em mim: por também ter uma doença autoimune, foi angustiante ler a forma como a família de Vânia, a mãe de Soraia, passou a tratá-la com o tempo e as complicações de sua doença. Em uma altura da trama, tive de dar um tempo na leitura porque chorei revoltada com uma coisa monstruosa que Toninho faz com sua mãe, uma reflexão para que pensemos onde está a culpa quando nosso corpo começa a falhar – resposta: em ninguém, mas acredite que esse tópico de “culpa” é algo grande para quem vive esta situação.

Apesar de ser minha primeira leitura da autora, gostei do ritmo e da leitura, gostei de como Paula Fábrio estrutura sua trama, entre idas e vindas no tempo contando a vida que estamos sendo apresentadas, as lembranças de Soraia nos mostrando a realidade de sua casa e de sua família em uma casa de família que, no final das contas, retrata muito bem a realidade de muitas casas da classe média, que são casas, mas como toda família é complicada, complexa, fragmentada e, algumas vezes, nada muito familiar.

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